Soul: Uma tragédia nas redes sociais...
A sério que começámos o ano a falar à toa sobre racismo, representatividade e inclusão social por causa de um filme de animação, com comentários mesquinhos e intriguistas e uma petição pública que reclama uma nova versão portuguesa do filme com «vozes negras», tudo porque a dobragem do filme foi feita exclusivamente por atores brancos? Eu não sei se vai ser criada uma nova versão portuguesa do filme, mas, a ser criada, não mudem as vozes. Mudem apenas o nome: Soul – Uma aventura nos ecrãs, uma tragédia nas redes sociais...
Estava com esperança de que começássemos o ano da melhor forma possível – a falar de amor –, mas bastou-me entrar no meu feed de notícias do Facebook para perceber que não poderíamos ter começado de pior forma: a falar à-toa, com comentários mesquinhos e intriguistas, tudo por causa de um filme. Sim, de um filme. Ainda por cima, de um filme de animação. Um filme que deveria ter animado as crianças neste Natal, mas que parece ter "animado" muito mais os adultos que não demoraram a invadir as redes sociais com comentários que não lembram ao Menino Jesus. Enfim, tanta coisa para se falar sobre isto, mas já lá vamos. Para já, falemos primeiro do filme e da sua aceitação a nível mundial.
Depois de tanta incerteza em torno da data – e da plataforma – do seu lançamento, eis que o novo filme da Walt Disney Pictures e Pixar Animation Studio chegou finalmente ao grande público: «Soul», um filme que conta a história de Joe Gardner, «um professor de música do ensino básico que tem a oportunidade da sua vida para tocar no melhor clube de jazz da cidade». O filme estreou-se mundialmente no passado dia 25 de dezembro, através do serviço de "streaming" Disney+, e parece que não poderia ter tido melhor aceitação mundial. De acordo com os sites Rotten Tomatoes e Metacritic, dois dos maiores agregadores de críticas de cinema do mundo, as críticas não poderiam ser mais consensuais, nem a sua classificação, com uma pontuação média atual de 8,4/10 e 83/100, respetivamente. Joe Utichi, do Deadline Hollywood, Kaleem Aftab, do IndieWire, Barbara Demerov, do AdoroCinema, Leslie Felperin, do The Hollywood Reporter, e Jason Solomons, do TheWrap, são só alguns dos críticos de cinema que muito elogiaram o filme. Não obstante, em Portugal, a aceitação não poderia ter sido pior, com comentários mesquinhos e intriguistas por parte da crítica "especializada". E porquê? Porque o filme tem um protagonista negro e a voz de atores negros na versão original, mas, na versão portuguesa, a dobragem foi feita em exclusivo por atores brancos, nomeadamente por Jorge Mourato, que dá voz à personagem principal. Sobre o filme, nem uma palavra, mas sobre a dobragem falou-se muito. Bastante. Demasiado até. E o que foi que se disse? Grosso modo, que se trata de mais um caso de racismo, de falta de representatividade e de falta de inclusão social. Há até mesmo quem tenha ido mais longe e criado uma petição para solicitar uma nova versão portuguesa do filme com «vozes negras». E eu a pensar que as vozes eram incolores...
Ana Sofia Martins, Dino D´Santiago, Mamadou Ba, Mayra Andrade, Nástio Mosquito, Pedro Coquenão e Sara Tavares são só alguns dos nomes mais sonantes que assinaram a petição que reclama uma nova versão portuguesa do filme «Soul» com «vozes negras». E o que é que estas personalidades têm em comum? Para além do tom de pele, são todos artistas: atores, cantores e músicos, cada um na sua especialidade, com exceção de Mamadou Ba, que é dirigente da SOS Racismo. Quero dizer, o próprio Mamadou Ba também é um "artista", mas só no sentido figurado da palavra. E até nisto eles são iguais. Sim, porque, nesta petição, eles não passam disso mesmo: de um grupo de "artistas" que reclama a substituição das vozes de atores brancos de um filme de animação por vozes de atores/artistas negros. Se fosse ao contrário, seria racismo, mas como foi um grupo de "artistas" afrodescendentes a assinar a petição é «a coisa certa». E é por isso que a petição conta com a assinatura de Mamadou Ba: porque pedir para substituir a voz de um negro pela voz de um branco é racismo, mas pedir para substituir a voz de um branco pela voz de um negro já não é. E só aqui já se nota o valor – e os valores – desta petição. Ainda assim, há quem teime em tentar encontrar argumentos para justificar esta petição, mas não são argumentos. São só disparates.
«Ah e tal, mas os desenhos animados do filme são negros», dizem algumas pessoas. E depois? Desde quando é que as vozes têm cor? E se têm, quantos afrodescendentes é que não têm «vozes negras»? À própria Ana Sofia Martins, eu não lhe reconheço nenhuma «voz negra». E se tivesse sido ela a fazer a dobragem, estava tudo bem ou teriam feito na mesma a petição, porque o que queriam mesmo eram "vozes de bairro"? Sinceramente, não percebi. Ainda por cima, é um filme de animação, destinado maioritariamente às crianças. Que raio de valores é que estamos a passar às crianças ao fazer esta distinção? Eu aposto que a maioria dos adultos – e a totalidade das crianças – que já viu o filme nem se deve ter apercebido da "cor" das vozes, mas assim que esta petição foi lançada, devem ter ido logo assinar. E porquê? Porque na petição diz que «é uma oportunidade de fazer a coisa certa». Ora bem, neste caso, sabem qual teria sido a coisa certa? Terem ficado calados e quietos e não porem em causa o trabalho de colegas de profissão sem qualquer fundamento, mas parece que a voz do bom senso é algo que não se ouve naquelas cabeças. Foi feio, muito feio. Ainda por cima, numa altura de pandemia, em que se pede solidariedade para com o trabalho de todos os artistas. Para além disso, estamos a falar de Jorge Mourato. Eu ainda não vi o filme, mas do pouco que conheço do trabalho de Jorge Mourato, acredito que deve ter feito um trabalho fantástico, melhor do que qualquer um que estivesse no seu lugar. E talvez por isso é que a Disney o escolheu. Já pensaram nisso? Ou acham que fazer a dobragem de um filme de animação é um trabalho que está ao alcance de qualquer artista? Não me parece. Acredito que deve ser um trabalho muito exigente, que não tem que ver só com a voz. Tem que ver com tudo, nomeadamente com a capacidade de sincronização da voz com os movimentos dos lábios/boca dos desenhos animados. Eu até entendo que alguns destes "artistas" queiram muito fazer a dobragem de um filme de animação, mas não é a fazerem uma petição que vão lá chegar. Além do mais, para além de um filme de animação, Soul é um filme de comédia e eu já vi Jorge Mourato a fazer «vozes negras" e parti-me a rir... Não têm hipóteses.
«Ah e tal, o problema não são as vozes, mas sim a falta de representatividade e de inclusão social», dizem outras pessoas. A sério que me vão falar de representatividade e de inclusão social neste contexto? Então e na série «Esperança», em que o ator César Mourão interpreta uma viúva octagenária, não há falta de representatividade e de inclusão social? O que não faltam são atores velhotes que poderiam muito bem fazer este papel. Ainda para mais, um homem a interpretar a personagem de uma mulher? Ai, valha-nos Deus, Nossa Senhora. Mas será que estão todos a dormir? Toca já a fazer uma petição...
A sério que começámos o ano a falar à toa sobre racismo, representatividade e inclusão social por causa de um filme de animação, com comentários mesquinhos e intriguistas e uma petição pública que reclama uma nova versão portuguesa do filme com «vozes negras», tudo porque a dobragem do filme foi feita exclusivamente por atores brancos? Eu não sei se vai ser criada uma nova versão portuguesa do filme, mas, a ser criada, não mudem as vozes. Mudem apenas o nome: Soul – Uma aventura nos ecrãs, uma tragédia nas redes sociais...