Direito ao(s) abono(s) de família?! Só se forem estroinas...
Sabiam que uma das condições para terem direito ao(s) abono(s) de família pré-natal e/ou para crianças e jovens é o requerente e o seu agregado familiar, à data do requerimento, não terem um património mobiliário – depósitos bancários, ações, obrigações, certificados de aforro, títulos de participação e unidades de participação em instituições de investimento coletivo – superior a 101.116,80 euros, correspondente a 240 vezes o valor do IAS?!
É verdade. E esta é somente uma das muitas condições (de recurso) estabelecidas por um Estado social que visa combater não só a pobreza, mas também a poupança, porque, pelos vistos, quem poupa e acumula riqueza não merece qualquer apoio financeiro do Estado. Aliás, se têm uma conta bancária com um valor superior a 50 mil euros, têm é de ser investigados, pois não é normal.
E para que não pensem que este prefácio é irónico e/ou desprovido de qualquer raciocínio lógico, consideremos dois cenários hipotéticos (mas não irreais) e concluamos sobre a virtuosidade e eficácia desta mesma condição.
- Cenário A (de "aforro")
Um homem e uma mulher que estudaram até os 23, 24 anos e que, mal terminaram a sua licenciatura, começaram logo a trabalhar; um homem que auferia um salário médio líquido mensal de 1.000 euros, 14 vezes por ano, ou seja, 14.000 euros anuais; uma mulher que auferia um salário médio líquido mensal de 950 euros, 12 vezes por ano, ou seja, 11.400 euros anuais; um homem e uma mulher que poupavam, em média, cada um, cerca de 10.000 euros por ano, ou seja, 20.000 euros anuais no total; um homem que recorreu às suas poupanças para comprar um automóvel no montante de 20 mil euros (um luxo, praticamente) e pagar as propinas do seu mestrado no montante de 6.500 euros (uma loucura, certamente); uma mulher que nunca sentiu necessidade de recorrer às suas poupanças para adquirir mais do que já adquiria com a parte do seu rendimento que gastava anualmente.
- Cenário B (de "boémia")
Um homem e uma mulher que deixaram de estudar aos 18 anos e que, com o 9.º ano de escolaridade, começaram logo a trabalhar e a auferir um salário médio líquido mensal de 500 euros, cada um, fora o que não era declarado; um homem e uma mulher que auferiam este salário mensal 14 vezes por ano, ou seja, 7.000 euros anuais cada um; um homem e uma mulher que não faziam qualquer poupança, talvez porque ganhavam pouco; um homem e uma mulher que mal ganhavam para pagar os convívios sociais que frequentavam aos fins de semana, quanto mais para poupar (sair à noite sai caro e não é pouco; que o digam os pais destes homens e destas mulheres).
Para completar os dois cenários, considerem ainda que tanto o casal do "Cenário A" quanto o casal do "Cenário B" casaram aos 30 anos e tiveram logo o seu primeiro filho.
Dito isto, vamos a contas?!
Ora bem, segundo os meus cálculos – e os da Segurança Social também –, o casal do "Cenário A" não deverá ter direito a qualquer abono de família, independentemente do valor do seu rendimento atual, porque dispõe de um património mobiliário (depósitos bancários) no montante de 103.500 euros, um valor claramente superior ao limite máximo de 101.116,80 euros. E nem mesmo que ambos estejam desempregados à data do requerimento se esta condição permite que este casal possa ter direito a qualquer abono familiar.
[É certo que o casal poderia levantar (do banco) parte das suas poupanças e guardá-la em casa, debaixo do colchão, sem a Segurança Social saber, mas admitamos (talvez por absurdo) que o homem e a mulher do "Cenário A" são demasiado honestos para tal veleidade.]
Quanto ao casal do "Cenário B", nem é preciso fazer cálculos, pois, como é óbvio, não só este casal terá direito a todo o tipo de abonos de família como, seguramente, ser-lhe-á atribuído o escalão 1.
[Se ambos estiverem desempregados, para além de terem direito a todo o tipo de abonos de família, deverão ter direito a todo o tipo de subsídios do Estado, nomeadamente ao rendimento social de inserção.]
E antes que concluam que nada é mais justo porque o casal do "Cenário A" ganha(va) substancialmente mais (praticamente o dobro) do que o casal do "Cenário B", permitam-me que vos apresente um último cálculo sobre o total de rendimento auferido pelos dois casais até os 30 anos, apurado com base na fórmula que se segue:
- Rendimento total = rendimento anual x número de anos de trabalho
ou seja:
- Cenário A: Rendimento total = 14.000 x 7 + 11.400 x 6 = 166.400 euros
- Cenário B: Rendimento total = 7.000 x 12 + 7.000 x 12 = 168.000 euros
Conclusão: O Estado social – português, subentenda-se – não se preocupa com quem ganha menos em detrimento de quem ganha mais. O Estado social preocupa-se, sim, com quem gasta mais em detrimento de quem gasta menos e é só por isso que os portugueses não poupam tanto.
Já agora, para que não duvidem da imparcialidade desta análise:
– Não, o meu agregado familiar não se enquadra nos pressupostos teóricos mencionados no "Cenário A", não porque eu e minha esposa não tenhamos estudado até aos 23, 24 anos (e mais alguns) e/ou não sejamos poupados, mas porque, em Portugal, há muito que a maioria dos licenciados e/ou mestres – nos quais eu me incluo – não auferem mais do que o salário mínimo nacional. Aliás, se não estiverem desempregados, é (quase) milagre.
– E não, a grande maioria dos licenciados ou mestres deste país não ganham mil euros líquidos mensais, não porque não dispõem de conhecimentos e/ou competências suficientes para estarem empregados e auferirem mil euros líquidos mensais, mas porque o Estado no qual vivemos – que diz-se "social" – há muito que emprega pessoas incompetentes que nem o salário mínimo deveria ganhar.
E se depois disto ainda não perceberam qual é o verdadeiro problema do Estado social, então é caso para vos dizer: Estudassem!