Centros comerciais não digo, mas igrejas...
O bispo do Porto lançou o repto, mas os "fiéis" foram mais longe: criaram uma petição online pelo encerramento dos centros comerciais ao domingo com o fundamento de que os portugueses teriam mais qualidade de vida. Ora bem, com o encerramento dos centros comerciais eu não sei, mas com as igrejas encerradas, não tenho dúvidas de que os portugueses teriam mais qualidade de vida, nomeadamente as crianças!
O assunto não é novo, mas ganhou novo fôlego com as declarações do bispo do Porto, que, no passado domingo de Páscoa, defendeu o fim do trabalho aos domingos. Segundo D. Manuel Linda, o trabalho ao domingo e o sistema de turnos é o «novo esclavagismo laboral» que acaba com «a herança cristã». Mais cedo o bispo tinha falado, mais rápido se tinha criado uma petição pública online para o encerramento dos centros comerciais ao domingo. Muitos devem estar a pensar que não vai dar em nada, mas a verdade é que a petição já conta com mais de 75 mil assinaturas. A cada hora que passa, o número de assinaturas aumenta às centenas e não tarda nada está-se a debater este assunto na Assembleia da República. Para quem acha que, apesar do número elevado de assinaturas, esta petição pública está muito aquém de representar a vontade da maioria da população, que se desengane, pois, na passada quarta-feira, dia 24 de abril, eu criei uma sondagem na página de Facebook deste blogue com a pergunta «Acha que os centros comerciais deveriam fechar ao domingo?» e o resultado não deixou margem para dúvidas: 54% dos votantes acha que sim e apenas 46% acha que não. É certo que, na sondagem, participaram apenas 158 pessoas, mas a verdade é que nada me garante que esta amostra não possa ser representativa do total da população portuguesa. Relativamente à pergunta «Costuma frequentar centros comerciais ao domingo?», 40% dos votantes respondeu «sim»; 60% respondeu «não», num total de 135 votos. E é exatamente isto que me preocupa: a estupidez e/ou a hipocrisia de muita gente!
De entre os principais argumentos a favor do encerramento dos centros comerciais ao domingo que são mencionados nesta petição pública online, destaque para «passar mais tempo de qualidade em família» e «melhorar a qualidade de vida das pessoas». Ora bem, sobre a petição e os respetivos argumentos, eis o que me apraz dizer:
Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro aos assinantes desta petição que, se os centros comerciais estão abertos ao domingo, é porque há pessoas que os frequentam. Não me parece que as grandes superfícies comerciais fossem abrir ao domingo para ficarem «às moscas». Muito pelo contrário. Parecem formigas. Se assim não fosse, os centros comerciais não abririam, nem ao domingo nem noutro dia qualquer. Não sou eu que o digo. É a «lei da oferta e da procura». De um lado, temos os consumidores, que querem comprar; do outro, temos as empresas, que querem vender. Da interação entre ambos resultam as quantidades e o preço de mercado. No caso dos centros comerciais, se o preço a pagar pelos consumidores é o de «passar menos tempo de qualidade em família», pois que assim seja. Só lá vai quem quer. Ninguém é obrigado.
Proibir a abertura dos centros comerciais ao domingo quando há procura e oferta não faz qualquer sentido, nem para as empresas, nem para as pessoas, nem para o Estado. Com esta medida, todos ficariam pior: a satisfação das pessoas diminuiria, o lucro das empresas diminuiria, a receita do Estado diminuiria. A consequência seria uma diminuição do bem-estar social. Para quem não percebe isto, que vá ler a «Riqueza das Nações», uma das obras mais famosas daquele que é considerado por muitos o pai da economia moderna. De acordo com Adam Smith, o livre mecanismo de mercado, onde cada agente económico atua com vista à prossecução dos seus próprios objetivos, leva a uma situação eficiente que beneficia todos. É como se tratasse de uma “mão invisível” que conduz os agentes económicos para uma situação óptima do ponto de vista da eficiência e do bem-estar social. Salvo exceções, quando existem falhas de mercado, o Estado não deve intervir no funcionamento dos mercados, sob pena de os tornar ineficientes. E isto serve tanto para o mercado de bens e serviços como para o mercado laboral.
Quem não quer trabalhar aos domingos num centro comercial, que não trabalhe. Arranje outro trabalho. Eu, por exemplo, não gosto de passar o dia a inserir números numa folha Excel, mas tem sido exatamente isso que eu tenho estado a fazer na última semana. Passar o dia a inserir números numa folha Excel não afeta tanto o meu tempo de qualidade com a minha família como passar um domingo a trabalhar num centro comercial?! Ai não, que não afeta. Afeta e muito. Mesmo quando já não estou no meu local de trabalho, já só vejo números à minha frente e, ao domingo, já só penso no que me espera na segunda-feira. Isto para não falar da frustação diária que eu sinto por não estar a fazer aquilo para o qual fui contratado. Não obstante, diz-me o meu bom senso que não faz qualquer sentido eu criar uma petição pública para pôr fim ao trabalho de inserir números numa folha Excel porque é algo que tem de ser feito. Neste momento, eu estou disposto a fazê-lo, mas, quando já não estiver, vou-me embora. Com a minha saída, hão de contratar outra pessoa para o meu lugar. Se ninguém aparecer para ocupar o meu lugar, logo se alteram as condições de trabalho para atrair trabalhadores. Se não se conseguir atrair ninguém para o cargo, extingue-se o posto de trabalho porque não há mercado para produzir tal serviço. É assim que funciona. Não são necessárias petições.
Em segundo lugar, gostaria de dizer que não me parece justo que se crie uma petição pública a pensar apenas e só nos trabalhadores que trabalham em centros comerciais ao domingo. Então, e para quem não trabalha nos centros comerciais, não há petições públicas para acabar com o trabalho ao domingo? Médicos, enfermeiros, polícia, bombeiros, entre muitos outros trabalhadores que trabalham aos domingos, não deveriam ter direito a «passar mais tempo de qualidade em família»? E para quem trabalha, mas não tem família, não merecem ter uma melhor qualidade de vida? Querem fazer petições, façam-nas com justiça e isenção. Não as façam só porque o bispo do Porto lançou um repto e vocês são "católicos". Se querem mesmo que as pessoas passem mais tempo de qualidade em família e melhorem a sua qualidade de vida em geral, não façam petições públicas para que se fechem os centros comerciais ao domingo: façam-nas, por exemplo, para que se reduza o horário normal de trabalho das oito para as sete horas diárias, à semelhança do que acontece na função pública, para que o tempo de licença parental e os apoios à natalidade sejam maiores, para que as leis laborais sejam mais justas e o dinheiro dos impostos que nos é retirado do nosso salário, fruto do nosso trabalho, seja mais bem aplicado,... Enfim, alterações bem mais relevantes do que a do encerramento dos centros comerciais ao domingo é o que mais não faltam para melhorar a qualidade de vida das pessoas, independentemente de terem família ou não.
Por último, mas não em último, quem foi que disse que, se as pessoas não trabalharem ao domingo, passam mais tempo de qualidade em família? Se «passar mais tempo de qualidade em família» for estarem todos em casa, com os filhos no táblete, o pai na televisão a ver futebol e a mãe a cozinhar e a limpar, sim, o encerramento dos centros comerciais poderia ser benéfico neste sentido. Ao invés, se «passar mais tempo de qualidade em família» for estarem todos juntos a confraternizar, esqueçam o encerramento dos centros comerciais ao domingo, principalmente para as mulheres. Mais vale estarem num centro comercial a trabalhar ou a gastar dinheiro do que em casa a trabalhar sem receberem nada em troca, nem sequer um elogio.
Quanto às declarações do bispo do Porto, que defendeu o fim do trabalho aos domingos dito e disse que o sistema de turnos é o «novo esclavagismo laboral» que acaba com «a herança cristã», apenas duas notas: a primeira é a de que eu acho piada ao facto de o bispo ter defendido o fim do trabalho ao domingo num domingo, enquanto celebrava a missa e exercia a sua atividade profissional de padre; a segunda é a de que, se, em vez de se fecharem os centros comerciais para acabar com o «novo esclavagismo laboral», se fechassem as igrejas para acabar com o "esclavagismo" sexual, não tenho dúvidas de que a qualidade de vida das pessoas aumentaria consideravelmente, nomeadamente das crianças.
O bispo do Porto lançou o repto, mas os "fiéis" foram mais longe: criaram uma petição online pelo encerramento dos centros comerciais ao domingo com o fundamento de que os portugueses teriam mais qualidade de vida. Ora bem, com o encerramento dos centros comerciais eu não sei, mas com as igrejas encerradas, não tenho dúvidas de que os portugueses teriam mais qualidade de vida, nomeadamente as crianças!